Íntegra da entrevista “Literatura deve tratar temas da vida” para matéria “Até o lobo mau ficou certinho...” de Mônica Pestana, Jornal da Tarde, Caderno Cidade, pág. 10A, em 15 de Março de 2010.
Jornal da Tarde: O que o Sr. acha das mudanças de clássicos como Chapeuzinho Vermelho ou cantigas como Atirei o pau no gato?
Ricardo Azevedo: Se as pessoas que propõem essas mudanças querem educar creio que estão no caminho errado. Educar é formar crianças e jovens que sejam expressivos, tenham pensamento crítico e também a clara noção de que têm responsabilidades para com a sociedade em que vivem. Numa sociedade desigual e violenta como a nossa, com tantos problemas sociais, em vez de perder tempo propondo modificações arbitrárias nas histórias e cantigas tradicionais essa gente devia se preocupar em como formar crianças e jovens aptos a discutir o consumismo desvairado, a transformação de valores humanos em mercadoria, o individualismo narcisista, o óbvio desequilíbrio social, as relações do homem com as tecnologias e coisas assim. Não será alterando a letra de “atirei o pau no gato” que vão conseguir isso.
J.T.: Mudar a letra de uma cantiga ou uma história clássica implica em um prejuízo para a literatura ou para a criança?
R.A.: O acesso à cultura popular, conhecer suas principais manifestações, seus artistas, suas características, sua riqueza e suas contradições, deveria fazer parte da formação de toda a criança brasileira. Num país como o nosso, onde ela é viva, pujante e, mais, representa a maioria da população, isso deveria ser óbvio. Infelizmente, minha sensação é a de que boa parte de nossas crianças são como estrangeiros no que diz respeito à sua cultura popular. Creio que essa é uma grande falha da nossa educação.
J.T.: Como a criança lida com o conflito apresentado nas histórias? Ela faz essa divisão da ficção e mundo real?
R.A.: Toda a literatura, seja ela popular, infantil, adulta ou outra, nasce do conflito e da contradição. Quando está tudo bem, quando não há conflito, não há história. Ao perceber que sua filha cresceu e está cada vez mais bonita, a mãe de Branca de Neve manda matá-la. Trata-se de um tema humano essencial: a luta do velho contra o novo. É importantíssimo que a criança tenha acesso a ele, e as histórias de ficção são um bom lugar para que isso ocorra. Quanto à divisão entre o mundo real e a ficção, ela não tem a ver apenas com crianças. Trata-se de um problema complexo, afinal, somos seres culturais e vemos o que nossa cultura permite que vejamos. Daí, por exemplo, a importância do estudo da cultura popular. Será que um pessoa que não freqüentou a escola enxerga a vida e o mundo da mesma forma que uma pessoa escolarizada? Quem estuda o assunto sabe que a resposta é não. Estão em jogo, portanto, diferentes maneiras de encarar a vida. Por que não tentar compreender melhor a cultura que produziu tantos ditados maravilhosos, criou o carnaval, o samba e o maracatu, e influenciou artistas como Villa-Lobos e Antonio Carlos Jobim?
J.T.: A criança precisa do conflito e dos “maus exemplos” para sua formação?
R.A.: Não se trata de bons ou maus exemplos. A literatura deve sempre tratar de temas da vida concreta e nela há um pouco de tudo: a busca do autoconhecimento, as paixões, a dificuldade em separar a realidade e a fantasia, as transgressões, a luta do velho contra o novo, a complexidade da convivência com o Outro e, entre muitos outros temas, o contato com o mal, por exemplo, a inveja, a mentira, a injustiça, a ganância, o ódio, o desprezo, o ciúme, o preconceito, o rancor etc.
J.T.: Qual o papel da literatura, em sua opinião, na formação de uma criança?
R.A.: Abrir as portas da imaginação e, ao mesmo tempo, humanizar, ou seja, introduzi-la aos temas humanos concretos. É preciso fazer a criança perceber que todo o ser humano é eminentemente social, tem determinadas potencialidades e limites, é expressivo, emotivo, criativo e efêmero, é capaz de construir linguagens e símbolos e também de transformar a natureza e a sociedade. Daí a importância de transmitir às crianças a noção de responsabilidade. Crianças serão as construtoras do futuro. Trata-se do seu compromisso de lutar para transformar o mundo num lugar melhor e não pior para todos.
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