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19/07/2011

Ricardo Azevedo

Ninguém sabe o que é um poema


"O livro é uma antologia de poemas. Poemas são textos inventados por poetas. Poetas são sujeitinhos inconvenientes, cheios de vontades, que adoram fazer bagunça e mudar tudo de lugar. Mal eles chegam, já vão logo enfiando o dinheiro no aquário, o peixe na carteira, pianos na planície e capim na lapela.
A fim de bagunçar de verdade, aproveitam-se da inocência das palavras: vão bolinando as mais sonsas e as obrigam a dizer coisas estranhas e imprevistas. Para tanto, valem-se não apenas do significado imediato de cada termo, mas também de seu som, seu peso, sua cor e do ritmo que muitas vezes se insinua entre duas sílabas, duas respirações. Contrariando dessa forma os hábitos e convenções, parece que eles acordam a linguagem de uma espécie de sono, enriquecendo-a com novas possibilidades de sentido.
Ricardo Azevedo, autor deste livro, pertence a essa classe de bagunceiros que não vieram para explicar coisa alguma, mas antes para partilhar suas inquietações. Inquietações sobre a natureza e a vida na cidade, sobre o amor e a violência, o amadurecimento pessoal, o mistério que são os outros e a própria poesia".

05/07/2011

O Caso do Espelho - Conto popular, de origem chinesa, recontado por Ricardo Azevedo

Era um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé esquecida nos cafundós da mata.
Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois gritou com o espelho nas mãos:
- Mas o que é que o retrato do meu pai está fazendo aqui?
- Isso é um espelho - explicou o dono da loja.
- Não sei se é espelho ou não é só sei que é o retrato do meu pai.
Os olhos do homem ficaram molhados.
- O senhor... conheceu meu?! – perguntou ele ao comerciante.
O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de madeira.
- É não! Respondeu o outro. – Isso é o retrato do meu. É ele sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E aquele sorriso meio sem jeito.
O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinho.
Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou cuidadoso, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira.
A mulher ficou só olhando.
No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mãos. Em seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando...
- Ah, meu Deus! – gritava ela desnorteada.
- É o retrato de outra mulher! Meu marido não gosta mais de mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do que eu!
Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no chão, não tinha feito nem a comida.
- Que foi isso, mulher?
- Ah, seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato?
- Que retrato? – perguntou o marido, surpreso.
- Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!
O homem não estava entendendo nada.
- Mas aquilo é o retrato de meu pai!
Indignada, a mulher colocou as mãos no peito: - Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa?
A discussão fervia feito água na chaleira.
- Velho lazarento coisa nenhuma ! – gritou o homem, ofendido.
A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo.
Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar pra casa.
- Que é isso, menina?
- Aquele cafajeste arranjou outra!
- Ela ficou maluca – berrou o homem, de cara amarrada.
- Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta lá no quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o que era. Ta lá! É o retrato de outra mulher!
A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato.
Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos de novo. Soltou uma sonora gargalhada.
- Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, velha, cacarenta, murcha, arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que eu já vi até hoje.
E completou feliz, abraçando a filha:
- Fica tranqüila. A bruaca do retrato já está com os pés na cova!